Quando falamos de Evangelhos, os livros que contam a vida de Jesus, costumamos dividi-los em dois grupos: os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e João. Essa divisão tem a ver com o carácter deles. Os três primeiros, embora não idênticos, são muito parecidos. João, invés, é muito diferente dos sinóticos, seja pelo estilo que pelo conteúdo. Por exemplo, nos sinóticos abundam os milagres, enquanto que em João aparecem poucos: apenas sete, entre os quais três que não se encontram nos outros evangelhos. Outra diferença importante é o estilo dos textos. Nos sinóticos é marcado o uso das parábolas, por parte de Jesus, para explicar a sua mensagem. Em João elas não aparecem, mas há muitos diálogos, que não existem nos primeiros três evangelistas (Samaritana, Nicodemos). Poderíamos ainda citar a questão geográfica: os sinóticos situam o ministério de Jesus na Galileia e Jerusalém e somente o local da sua Paixão; João, invés, centra todo o ministério de Cristo em Jerusalém. E, por fim, coisa fundamental, João fala especificamente de Cristo, enquanto que nos sinóticos aparece muito sublinhado a relação de Jesus com os apóstolos.

Esses elementos mostram como João escreveu uma obra particular, que precisa ser tratada com um olhar diferente.

 

A estrutura de João

Sem entrar em detalhes sobre a divisão do Evangelho de João, queria apenas mostrar como uma das partes do Evangelho é dedicada aquilo que normalmente é dito “os sinais” de Jesus, que são sete.

É normal, deixando como uma introdução o capítulo 1, dividir o quarto evangelho em duas partes:

  • 1,19 – 12,50: libro dos sinais – Quem é Jesus
  • 13,1 – 20,31: livro da glória – Ceia, morte e ressurreição de Cristo

 

Os sete sinais

Na primeira parte da sua obra, João procura mostrar quem é Jesus, descobrir a sua natureza, revelar a sua missão. Para isso usa “sinais”, que são sete:

  • As bodas de Caná (2,1-12)
  • Cura do filho de um funcionário (4,43-54)
  • Cura do paralítico (5,1-47)
  • Multiplicação dos pães (6,1-15)
  • Caminhar sobre as águas (6,16-70)
  • Cura do cego de nascença (9,1-41)
  • Ressurreição de Lázaro (11,1-54)

Não pretendo falar desses sinais, mas apenas usá-los para mostrar a lógica do pensamento do apóstolo e evangelista.

 

A compreensão do evento “Jesus”

Um texto fundamental de João se encontra em 16,12-13:

Tenho ainda muito que vos dizer, mas não podeis agora suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras.

Esse texto mostra que quando Jesus falava nem tudo era entendido pelo seu público. A compreensão do que representou Jesus ficou evidente somente depois da sua morte e ressurreição. O que escreve João por volta dos anos 90 não poderia ter escrito quando Jesus morreu. A compreensão da vida de Jesus não foi automática, mas cresceu com o tempo. Os apóstolos não entenderam imediatamente profundamente o sentido da sua pessoa e dos seus gestos.

Em João há dois textos que mostram esse processo de maneira clara. O primeiro se encontra no capítulo 2, quando Jesus fala da sua morte e ressurreição: “destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (versículo 19). João, então acrescenta: “Ele, porém, falava do Templo do seu corpo” (versículo 21). Essa nota do evangelista é importante porque mostra a compreensão plena da mensagem enigmática de Cristo. Na mesma ocasião, aproveita para mostrar aos leitores como os apóstolos levaram tempo para entender de maneira clara o que Jesus queria dizer e qual relação havia aquela frase com a sua história: “Quando ele ressuscitou dos mortos seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus” (versículo 22).

O segundo texto se encontra em João 12, que conta o ingresso de Jesus em Jerusalém, antes da sua Paixão. Nessa ocasião o evangelista cita um texto de Zacarias 9,9: “Não temas, filha de Sião! Eis que vem o teu rei montando num jumentinho!” E acrescenta: “Os discípulos, a princípio, não compreenderam isso; mas quando Jesus foi glorificado, lembraram-se de que essas coisas estavam escritas a seu respeito e que tinham sido realizadas” (João 12,15-16).

João está dizendo que o que Jesus dizia só foi entendido depois, repensando tudo o que aconteceu, relendo a Bíblia os discípulos entediam o que fizeram com Jesus e se tornou evidente que as Escrituras já falavam dEle. Só quando escreve o Evangelho João tem consciência disso e pode inserir a passagem de Zacarias na narração sobre a entrada de Jesus em Jerusalém.

Nesse sentido, o evangelista, fazendo uma leitura teológica do evento Jesus, colocou na boca de Cristo coisas que Jesus, durante a sua vida terrena, não pode ensinar. Foram “ensinadas” pelo Espírito, como subentendido na passagem do capítulo 16, citada acima. No fundo, são palavras de Jesus, pois se trata do seu Espírito que ensina.

É por isso que o Evangelho de João pode ser lido, com bons frutos, somente em nível espiritual. Há, obviamente uma possibilidade de lê-lo como testo literário, estudando a sua história, estrutura e estilo. Mas só a leitura da fé permite compreender toda a sua profundeza.

 

Os sinais

Os “sinais” da primeira parte do Evangelho de João traduzem essa perspectiva espiritual da obra.

O termo grego usado é semeîon. Às vezes é traduzido simplesmente como “milagre”, coisa completamente errada.

O sinal é algo que faz vir à mente outra coisa. Ele pode ser natural ou convencional.

Um sinal natural é algo entendido por todos. Por exemplo, fumaça relembra fogo. E isso em todos os lugares do mundo. As pegadas de pés na areia da praia lembram uma pessoa, que por ali passou.

Um sinal convencional invés é diferente para cada cultura, para cada contexto. No tempo dos vickings, o corno era sinal de força. É por isso que os vemos sempre representados com um capacete com cornos. Hoje, para nós, o corno tem outro sentido. A palavra “cachorro” significa o animal doméstico para todos os que conhecem português. Mas para quem não o conhece, não quer dizer nada. Esses são sinais convencionais.

Entender um sinal natural é fácil, mas sinais convencionais mudam de cultura para cultura. João usa principalmente sinais convencionais. Para entendê-los é necessário estudar o seu contexto. Só assim podemos entender de maneira plena. Por exemplo, quando diz que encontra a Samaritana no poço, precisamos entender o sinal “poço”, que provavelmente para nós não significa nada, mas para a cultura bíblica significa muito; é, por exemplo, o lugar privilegiado para começar uma relação que se tornará “casamento”.

Para entender João precisamos sair das nossas convicções culturais.

 

O Símbolo

O sinal, visto que se trata de algo que chama em mente una outra realidade, é expressão de uma dualidade: existem dois elementos, um que conduz ao outro. Em João essa dualidade é constantemente exprimida em relação a planos: o baixo e o alto, o mundo do ser humano e o mundo de Deus, aquilo que se vê e aquilo que verdadeiramente existe. Os setes sinais que Jesus realiza representam a síntese de sua vida, que é, em si, um sinal, um grande semeîon.

Poderíamos dizer que a vida de Jesus é um símbolo.

A palavra símbolo em grego (symbolon) lembra dois pedaços de uma mesma realidade, necessárias para constituir um todo. O símbolo, portanto, é uma metade que precisa da outra para criar uma unidade.

O contrário de symbolon é diabolon (separar, dividir).

Retomando João, os fatos históricos da vida de Cristo para ele são os sinais, o símbolo da da vida de Deus, do mistério trinitário divino. Jesus é aquele que permite criar unidade. Os fatos que João conta, sinais, são tidos como significativos, comunicam algo a mais. É por isso que precisam ser lidos em chave simbólica.