Existe um problema de crítica textual em Mateus 17,21, no contexto da narração sobre o endemoninhado epiléptico. Jesus cura o menino e faz com que o demônio saia dele. Concluindo a passagem, no versículo 20, Jesus diz:

«É porque vocês não têm bastante fé. Eu garanto a vocês: se vocês tiverem fé do tamanho de uma semente de mostarda, podem dizer a esta montanha: ‘Vá daqui para lá’, e ela irá. E nada será impossível para vocês.»

O versículo seguinte, o 21, que aparece em muitas bíblias, pode não ser original, mas um acréscimo em Mateus. De fato, esse versículo não aparece em muitos manuscritos importantes, mas apenas em alguns considerados com menos autoridade. A Bíblia de Jerusalém, por exemplo, coloca o texto somente em nota de roda pé. O versículo é o seguinte:

«Somente oração e jejum podem expulsar esse tipo de demônio.»

Na passagem paralela de Marcos (9,14-29), a narração termina com as seguintes palavras de Jesus (Marcos 9,29):

«Essa espécie de demônios não pode ser expulsa de nenhum modo, a não ser pela oração.»

É provável que o escriba que copiou o texto de Mateus para seu manuscrito, quis harmonizar o texto com o Evangelho de Marcos, acrescentando também o jejum.

 

A importância do jejum

O jejum é um tema muito importante na Bíblia. Ele não é uma meta em si, mas faz com que quem o pratica retorne nos caminhos do Senhor. Sua prática há diversas nuances, que podem ser válidas também para nós hoje. Quando alguém faz jejum, assume uma atitude de meditação, um comportamento diferente do ordinário; quem pratica o jejum se abre ao mistério, ao extraordinário. Além desse aspecto especificamente espiritual, existe algo de material: ele ajuda a criar consciência daquilo que está em relação conosco, especialmente o alimento. Reconhece-se que estamos diante de um dom, que não pode ser manipulado, mas, sendo presente, deve ser estimado e dividido.

Muitos abusos existem. Esses abusos não devem excluir a prática do jejum, mas reforçar o verdadeiro jejum, o pensamento em Deus e a abertura a entender os bens materiais como uma dádiva divina.

Coloco aqui embaixo um texto de Isaías, que é a leitura que os católicos leem hoje, primeira sexta-feira da quaresma, durante a celebração. Preste atenção, pois Isaías não fala contra o jejum, mas contra a hipocresia de em certas pessoas. Segue o texto (Is 58,1-9a):

Assim fala o Senhor Deus:

Grita forte, sem cessar,
levanta a voz como trombeta
e denuncia os crimes do meu povo
e os pecados da casa de Jacó.

Buscam-me cada dia
e desejam conhecer meus propósitos,
como gente que pratica a justiça
e não abandonou a lei de Deus.
Exigem de mim julgamentos justos
e querem estar na proximidade de Deus:

'Por que não te regozijaste, quando jejuávamos,
e o ignoraste, quando nos humilhávamos?'
- É porque no dia do vosso jejum tratais de negócios
e oprimis os vossos empregados.

É porque ao mesmo tempo que jejuais,
fazeis litígios e brigas
e agressões impiedosas.
Não façais jejum com esse espírito,
se quereis que vosso pedido seja ouvido no céu.

Acaso é esse jejum que aprecio,
o dia em que uma pessoa se mortifica?
Trata-se talvez de curvar a cabeça como junco,
e de deitar-se em saco e sobre cinza?
Acaso chamas a isso jejum,
dia grato ao Senhor?

Acaso o jejum que prefiro não é outro:
- quebrar as cadeias injustas,
desligar as amarras do jugo,
tornar livres os que estão detidos,
enfim, romper todo tipo de sujeição?

Não é repartir o pão com o faminto,
acolher em casa os pobres e peregrinos?
Quando encontrares um nu, cobre-o,
e não desprezes a tua carne.

Então, brilhará tua luz como a aurora
e tua saúde há de recuperar-se mais depressa;
à frente caminhará tua justiça
e a glória do Senhor te seguirá.

Então invocarás o Senhor e ele te atenderá,
pedirás socorro, e ele dirá: 'Eis-me aqui'.
Palavra do Senhor.